Seguindo as águas deste
discurso em eterno
devir, falo agora
das paisagens do
D’Ouro, refletindo seus azuis
profundos a desaguar no Atlântico,
de encontro às frias ondas
que banham
a freguesia da Foz, no Porto.
A cidade é envolvente, tem seu ritmo
próprio, banhado de nostalgia, de odores do cais, madeira, mar
e cafés pelos seus lugares antigos. Dezembro é época
muito fria, as temperaturas bateram os dois graus, mantendo uma média
máxima de oito talvez. As roupas pesadas acentuam o ar severo,
as feições fechadas numa introspecção
constante, o que nos leva a compreender o porque da poesia portuguesa
ter atingido níveis altíssimos de expressão.
A região da baixa, às margens do D’Ouro concentra as
edificações do período medieval, que é a
face mais conhecida do Porto, é seu cartão postal. A
ponte D.Luis une a Ribeira às caves do vinho do Porto em Vila
Nova de Gaia. A construção
em metal foi idealizada por Eiffel, e desponta como o marco
internacional da cidade. Há sobre o D’Ouro, a pouca
distância da ponte D.Luis I, a ponte D. Maria, atualmente
interditada, e que também exibe um belíssimo desenho em
sua estrutura metálica.
Mas a cidade se desenha para além
das margens do D’Ouro. Subir pelas ruas estreitas nos leva de
encontro à Torre dos Clérigos, construída em
1758, medindo 75 metros, também é um marco da cidade,
além de outras, como a Igreja de São Francisco iniciada
no século XIV, possuindo catacumbas em seu interior que é
ricamente decorado com colunas e pilares, querubins e guirlandas.
Estas são as paisagens que vi
durante os meses de dezembro,
janeiro e fevereiro últimos,
período em que residi na cidade, conhecendo “as gentes”,
artistas, os lugares e os modos de ser. Produzi obras neste período,
pinturas, gravura e cerâmica, mas antes de contar sobre minha
produção artística por lá, creio que vale
pensarmos no que é fazê-lo em “português”,
isto é, percebermos que na criação de imagens há
muito mais do que se supõe. E perceber isto nos leva a
constatar que antes de tudo a matriz portuguesa é de natureza
artística, que é justamente na expressão da alma
que este povo veio a criar suas raízes, sobretudo, no que a
língua soube lhes dizer, e que nos transmite como legado
cultural.
Por isto, de imediato, contar a lembrança
dessa viagem a Portugal me pareceu fácil, afinal, é a
terra que nos deu a língua e ainda nos dá tantas
memórias vivas no imaginário brasileiro. Sobressaiu de
imediato o “familiar”. Mas dissipadas as aparências fáceis,
cresceu a sensação de “novidade” quando, daqui do
Brasil, pensando nesta “nossa” língua, me faltaram às
palavras uma “tradução”para o que foi sentido e
imaginado lá em português.
Persiste assim o tal “descobrimento”,
agora em sentido oposto, revelando o percebimento de uma estranha
diferença que a língua matriz encerra em si mesma. Digo
aqui sobre o que vai além das diferenças de nomes de
coisas, constatação que é apenas uma
sombra pálida da questão.
Assim, falo da importância de
reconhecer as diferenças e igualdades intrínsecas entre
a cultura dos povos, que surgem aqui, neste meu breve relato, como a
minha percepção do fenômeno lingüístico,
em sua potência criadora, engendrando formas na mente.
Formas que potencialmente estão presentes também em
mais de 200 milhões de pessoas espalhadas pelo mundo. Imagens
comuns que às vezes são apreendidas como parte de um
destino, sobretudo, para os que não nasceram às margens
do D’Ouro ou do Tejo, nem em Trás-Os-Montes, nos Açores
ou na Madeira. Estamos de algum modo ligados, lusitanos, brasileiros
e africanos, por este fio imaginário que desenha um tênue
contorno, colorido posteriormente segundo ordens e vontades
absolutamente particulares, porém, sem jamais se dissolvem por
completo, preservando a idéia originária de unidade.
Para alguns, isto pode corresponder ao desejo antigo pelo “império”,
para outros, é só mais uma fantasia dentre as tantas
que nasceram aos pés da moderna Babel.
Correspondendo ao lirismo que
o Porto traz
aos sentidos, diria que as “nossas
línguas portuguesas” buscam
ser poesia na
superação das
diferenças substantivas,
trazendo à tona em
cada indivíduo,
semelhanças exibidas na
atualidade da fala, naquilo que
os predicados são
em suas
potências originárias.
O PORTO
Se é verdade que cada um de nós
ocupa um só lugar no espaço, no Porto surge uma firme
sensação de que habitamos também um só
tempo, o de “um” passado que pulsa ali mesmo onde a mão
“está a alcançar” as imagens do presente.
A obviedade deste
deslocamento temporal, deste
retorno, re-ver um dado
momento histórico,
nasce naturalmente do contato
visual com
a cidade “invicta”,
do que ela exibe
em seu primeiro
plano. Mas atrás
dos véus inebriantes
das visões de pontes, do
vinho e do rio, há outra
vida interna
que se
oculta justamente no óbvio.
Falo das atividades rentes
ao dia do
comércio, da indústria e
da política. Assim, só quando
o deslumbramento turístico inicial
sede lugar
ao olhar que
vê para
além das
formas arquitetônicas antigas,
é que a percepção
pousa num
cotidiano urbano complexo
e em franca
transformação.
Ferro, madeira, pedra e
barro, tudo no Porto exala
a passagem da matéria
pela mão
do artista ou
ao menos sob
seus cuidados.
Tem-se a impressão de andar
por um
monumento a
céu aberto, seja no interior
de um café
ou numa
das muitas igrejas centenárias.
A arte está presente
em tudo.
Numa só rua
há a possibilidade de registrar
milhares de
padrões diferentes de
azulejos recobrindo as casas, e o
mesmo ocorre com os
gradis projetando-se para a
calçada.
Mas a vida
da cidade também
se atualiza noutro ritmo que
o de seus monumentos
seculares, movimento que
foi acelerado pelas exigências
da entrada “recente”de
Portugal na Comunidade Européia
em 1986. O processo
globalizante e a conseqüente
integração que
promove sobre a sociedade portuguesa
traz à tona as
necessidades desta nova
Europa “unificada”, sombreando as
antigas formas lusas de ser e
criar a vida, transformando-as, e
transformando toda a vida
portuense num palco de
grandes confrontos, surgimento
e desaparecimento, resistência
e adesão. O ambiente
intelectual portuense
vive intensamente o problema
da transição de
paradigmas, a sociedade está
em discussão pelas
ruas, junto aos cafés, nas
livrarias. Os antagonismos são
rapidamente percebidos e localizados quanto
à orientação
política que
seguem devido a
objetividade e firmeza
ideológica com que
artistas, escritores e
escultores defendem suas
perspectivas.
Credito esta característica
ao número reduzido
de atores culturais da cidade, se
comparados com os da cidade
de São Paulo,
por exemplo, que possui
uma quantidade infinitamente
maior de
indivíduos ligados às
artes e a cultura.
O Porto conta
hoje com
uma população
aproximada de 380 mil habitantes.
Possui um desenvolvido setor
cultural distribuído em
pequenos núcleos
bem definidos,
entre eles, além dos
artistas, estão também os
professores e os estudantes. Assim
podemos presumir deste
contingente atuante, que não
há um número
tão grande
de pessoas envolvidas
no circuito oficial, a ponto
de criar o
anonimato que prevalece na cidade
de São Paulo, e
por isto, tais atores
culturais acabam mantendo algum
contato, em algum
momento de
sua atividades. São
nestas ocasiões que
o diálogo toma
corpo. Elevam-se figuras e
projeções são
lançadas quanto aos
rumos da arte.
É assim que
a mansidão poética
das águas do
D’Ouro se agitam e assumem outra
função que
não apenas a de
alimentar o lirismo lusitano.
Agora há o apontar
para mais
uma “nova expansão”,
ampliar as áreas de
contato que a
língua comum facilita.
(Pros)seguir o que parece
ser uma vocação
ou talvez
o destino deste
povo: ser um outro
no além mar.
Lirismo à
parte, a orientação comercial
portuguesa tem no Brasil seu maior
porto, por razões
que não
nos ocuparemos
aqui. Por outro lado,
além do empreendimento
mercantil é
o comércio entre os
homens, justamente essa nau, que
leva consigo
um processo
intenso de
disseminação cultural
e de miscigenação de
imaginários, que transforma
o entorno de modo diferente
do que o
que é promovido pelas vias
da mídia e
da internet. Daí é que se
diz, lá no Porto, que
se o Brasil também é
uma casa portuguesa o Porto
também deve
ser uma porta desta
mesma casa, por onde
entram os brasileiros. Contudo, o trânsito
mútuo dos
“irmãos” de língua
não é
senão também
mais uma
aparência, quando pensamos no
que poderia ou,
mais ainda, no que “deveria”
ser, pois a crua realidade
mostra outra
cena. É desproporcional a
área de contato
cultural entre os
dois países se
compararmos com as atividades
efetivas realizadas no âmbito
comercial.
De início, as áreas de
contato cultural chegam aqui
nos trópicos
menos do
que necessita nossa
capacidade de
conhecer e aportam por lá
igualmente de
modo incipiente, limitadas em
geral à
sociedade portuense ao lugar
comum – o
samba e o futebol. Em
contrapartida as
imagens do medo, da violência
urbana brasileira,
sobretudo as da vida
paulistana e
carioca invadem em abundância
os televisores. Sobram assim às
iniciativas particulares, que
demandam anos de
esforços individuais, a
tarefa de mudar esta
balança cultural.
Certo também é
dizer que se
há movimentos contra a
homogeneização da
cultura, o Porto reúne as
condições para
abrigá-los. Os mecanismos
para impedir
a dissolução das
visões tradicionais sobre
as “artes portuguesas”
permanecem atuantes, não como
resultado de
um consenso entre
os atores da
cultura, – cenário que
na verdade apresenta
cisões acentuadas – , mas
pelo difícil
acesso criado
por esse
mesmo tradicionalismo
e que só
se deixa tanger
pelo novo
em raras
circunstâncias.
Sob o
olhar estrangeiro o
caráter portuense, de
imediato, se mostra grave, incisivo,
firme e pouco refratário
às mudanças externas, vistas
sempre de
fora, da perspectiva de uma tradição
plena de
certezas e sabedora de seus
caminhos e
lugares. Portanto, o contato mais
íntimo com
a arte feita
hoje na
cidade “invicta” é
trabalhoso para o
artista estrangeiro, seja ele
brasileiro ou
chinês.
As exposições
acontecem ininterruptamente. Trata-se mesmo
de uma vocação da
cidade portuária: exibir-se
como centro de
cultura. Museus, galerias e afins
estão abertos a
todos, e o público em
geral tem
contato periódico com
obras estrangeiras.
Entretanto, pode limitar-se a fruir a
partir do discurso português,
que busca seu
próprio estatuto
de universalidade em tempos
de transição. Se esse
é o destino da
obra de arte por
essência ou
mera pasteurização
da apreensão artística,
tanto faz.
A questão é que este não
é um contato que revela ao estrangeiro o que move o íntimo
do artista português, que se preserva da desintegração
contemporânea amparado pelo peso das suas instituições
seculares que lhe dão amplas condições de
transitar pela tradição sem constrangimentos, sem
assumir nesta conduta moral contornos negativos ou pejorativos.
Há, por lá,
muito mais a
se ver do que está
posto nas aparências e
muito mais ainda
a mostrar da
nossa cultura para
o que se julga ser do
interesse lusitano.
O tempo agora
é o de construção
de diálogos, de reavaliações
sobre as
nossas reais condições
de compreender este
outro momento
histórico em
que o
“imaginário português”
– fantasiosamente ou
não -
reúne em sua matriz
lingüística, nações
distribuídas em quatro
continentes diferentes,
sendo o Brasil a maior delas. Tal
potência se
amplia quando pensamos no âmbito das
artes, pois é deste
núcleo que pode
surgir outros modelos
de convívio cultural.
*Mauro Andriole
– graduado em Filosofia
pela USP,
gravador e pintor, escultor,
ilustrador. Suas últimas
participações: I Salão Internacional
de S. João da Madeira e
da Exposição de Arte
Integrada ao SEMINÁRIO
PORTUGAL – PALOP/CPLP – BRASIL; na
SERVARTES , espaço multimídia
no Porto, e também no
Espaço de Arte Vera
Lúcia; no Brasil, participou como
convidado especial
da 3ª Bienal Nacional
de Gravura Olho
Latino, Atibaia, em Maio
de 2007.
Leia mais Residência
artística e
Cultural, Mauro Andriole aqui
Imagens – arquivo
do artista
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