Picasso e seu cubismo transgressor
Fábio Magalhães*
Picasso foi uma das maiores personalidades do século XX e certamente, o principal protagonista do modernismo nas artes plásticas. Verdadeiro vulcão, nenhum artista de seu tempo produziu com tamanha paixão, com tanta vitalidade. Talvez Michelangelo teve tanta energia, paixão e erotismo quanto Picasso.
Criador do cubismo, junto com Georges Braque, Picasso irá exercer uma enorme influência nas transformações culturais e artísticas que marcaram o início do século XX.
Interesse contínuo pela gravura
Em 1899 Picasso realiza com a ajuda de Ricardo Canals a sua primeira gravura, “El Zurdo”, representando um picador. Na época tinha 18 anos e vivia em Barcelona. Sua última gravura foi produzida em Moujins, no sul da França, em 25 de março de 1972, quando tinha 90 anos, um ano antes da sua morte ocorrida em 8 de abril de 1973. Calcula-se que Picasso realizou ao longo de sua vida cerca de 2200 gravuras nas suas diversas técnicas (calcografia, litografia, gravura em metal). Seu interesse pela gravura foi uma constante, nas diversas fases de sua obra.
Na maioria das vezes Picasso trabalhava com séries onde havia predominância temática. É o caso da famosa Suíte Vollard, assim chamada pelo editor e marchand Ambroise Vollard e é composta de 100 gravuras feitas entre 13 de setembro de 1930 e 12 de junho de 1936. A série retratou minotauros, violações, mulheres e também o tema do artista e seus modelos. As três últimas gravuras, incluídas nesse conjunto, são retratos de seu amigo Vollard, datados de 1937. No mesmo ano em que Picasso pintou a grande tela Guernica, denunciando o bombardeio alemão e os horrores da guerra civil espanhola.
Outra série importante no conjunto de sua obra é a chamada Série 347, porque é composta por esse número de gravuras, todas realizadas no curto período de sete meses, no ano de 1968. E tem como tema central – o pintor e seu modelo. Picasso recorreu a sua iconografia de outrora ao retrabalhar a figura da A Celestina, pintada em 1903(inspirado na personagem de um romance medieval de Fernando Rojas, publicado em 1499)alem de incluir ele mesmo na composição em forma de auto-retrato.
A Série 156 que, na verdade, consta de 157 águas-fortes e foram criadas entre 1970 e 1971. Picasso representou bordeis onde inseriu, entre outros personagens, o pintor Degas, a Celestina, e a si próprio como nonagenário espectador.
A Coleção Píer Paolo Cimatti
Todas as obras desta exposição pertencem à coleção Pier Paolo Cimatti.
O colecionador de arte reside em Milão e é proprietário da casa editora Torcular voltada para a edição de gravuras e de livros de arte. Sua empresa produziu séries completas de gravuras de grandes mestres como Max Ernst, Mimo Rotella, entre outros, além da publicação de inúmeros catálogos das exposições que organiza na Europa e na América Latina. No Brasil, organizou mais de uma dezena de exposições, sobretudo, de mestres italianos do século XX.
Seu primeiro contado com museus brasileiros se deu em 1992 quando realizou no Masp a exposição retrospectiva de Aligi Sassu, com textos de Giulio Carlo Argan, Werner Spies e Fábio Magalhães. Trouxe para o MuBE – Museu Brasileiro da Escultura Marilisa Rathsam a maior exposição de Max Ernst que já se realizou no país, sendo que grande parte das obras gráficas apresentadas pertenciam a sua coleção. Depois organizou uma grande exposição de De Chirico, no mesmo museu, com curadoria de Bonito Oliva e que incluía também peças da sua coleção. Ainda merecem destaque as exposições de Mario Schifano e Salvatore Emblema, organizadas por Cimatti e realizadas, respectivamente, no Memorial da América Latina e no Museu da Arte Contemporânea da USP, no Ibirapuera.
Em junho de 2004 o Palácio Albertini de Forli, sua cidade natal, exibiu uma grande exposição sua coleção particular - De Picasso a Botero (capolavori Del novecento da uma collezione privata),com obras de Arman, Baj, Campilli, Carrá, César, Sandro Chia, Dali, Fontana,Matta, Miró, Mimmo Paladino, entre tantos outros.
Apaixonado pelo desenho e pela gravura, Cimatti possui centenas de obras Max Ernst e De Chirico. Possui toda a gráfica de Morandi, além das gravuras de Picasso que estão sendo exibidas na mostra itinerante Picasso, Paixão e Erotismo, organizada pelo Circuito Cultural do Banco do Brasil .
“A arte é uma mentira que nos
ensina a compreender a verdade”
O cubismo foi um divisor de águas, uma ruptura, definindo um antes e um depois de seu advento. Desencadeou uma profunda mudança nas mais diversas manifestações artísticas e no pensamento de seu tempo. Para o poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz, os trabalhos do mestre espanhol foram simultaneamente encarnações e profecias das mutações experimentadas em nossa época, Em suas telas e objetos, torna-se visível e palpável o espírito moderno, ao mesmo tempo em que o nosso tempo se afirma para negar-se e se nega para inventar-se e ir além de si.
“Quando descobrimos o cubismo, não tínhamos a menor intenção de descobri-lo”, comentou certa vez o próprio Picasso. “Queríamos apenas exprimir o que havia dentro de nós. Não tínhamos um plano de batalha especial. Nossos amigos poetas, entre eles Guilhaume Apollinaire e Gertrude Stein, seguiram atentamente nossos esforços, mas nunca nos deram instruções... Todos nós sabemos que a arte não é a verdade. A arte é uma mentira que nos ensina a compreender a verdade. Pelo menos aquela verdade que nós, como homens, somos capazes de compreender.
Depois do cubismo o mundo jamais foi o mesmo, como diz Wendy Beckett. Os domínios do universo visual estilhaçaram-se irrefreavelmente, mas não de forma insensível ou desprovida de sentido. Sensualidade, beleza e ciência conjugaram-se como nunca. De fato, nada mais desconcertante – perturbador mesmo – do que enfocar um objeto, animal ou pessoa sob diferentes ângulos, desdobrando simultaneamente todas as suas possibilidades de existência, conforme a subjetividade do artista, mas sem desprezar ou destruir a superfície plana da tela. Ao pintar em três dimensões, Picasso quebra concretamente a superfície, a ediperme da escultura clássica. Como Cézanne havia indicado, não deviam existir linhas que limitassem a verdade senão uma forma que surgisse de todos os diferentes aspectos intuídos juntos. Mais do que um artista plástico, Picasso seria um fenômeno complexo e amplamente sintonizado com o próprio conhecimento transformador produzido neste século, aí incluída até mesmo a Teoria da Relatividade de Eisntein, com todas as implicações que abalariam os conceitos então vigentes de espaço e tempo.
Na virada do século, quando Picasso chega a Paris, a cidade era um verdadeiro centro internacional e para lá convergiam intelectuais e artistas de todo o mundo. Esse internacionalismo é a característica fundamental do cubismo e, mesmo mais tarde, nos anos 20, quando os tempos revolucionários já haviam recrudescido com a grande guerra, os artistas brasileiros, entre eles Tarsila do Amaral e Emiliano Di Cavalcanti, ficaram fascinados pelo cosmopolitismo do ambiente cultural parisiense.
Picasso chega a Paris no ano de 1900, fugindo do serviço militar espanhol, por ser anarquista e pacifista, vive entre Paris e Barcelona nos anos 1903 e 1904 para a partir dessa data nunca mais residir fora da França. Em 1900 Picasso tinha 20 anos incompletos, contudo possuía amplo domínio do desenho e da pintura. Logo se deixa contaminar pelo espírito transgressor que viceja no meio artístico parisiense. Começa a freqüentar as rodas literárias, discute política com o ardor juvenil, mostra-se aberto a tudo o que lhe servirá, poucos anos mais tarde, para alterar os rumos da arte no Ocidente. Durante toda sua vida, ele manterá acesa essa mesma chama anarquista, demonstrando sempre uma profunda preocupação com as questões sociais, uma solidariedade com os oprimidos e um enorme desprezo pelos valores estabelecidos, pelo consagrado.
Em 1907 Picasso atordoa seus amigos, boêmios, artistas e intelectuais com a tela Les Demoiselles d’Avignon, uma alusão a um famoso bordel da época, existente na Carrer d’Avinyo (Rua d’Avignon) em Barcelona e, com ela dá início à aventura cubista.
Essa tela foi exposta ao grande publico pela primeira vez em julho de 1916 no Salon d’Antin, em Paris. Torna-se um marco definitivo para o cubismo, ainda que as paisagens sobre L’Estaque, de Georges Braque, tenham sido as primeiras pinturas já com características cubistas exibidas ao público. A obra de Picasso representou um ato de violência, como se tivéssemos tomado um murro na cara. Era uma provocação estética e social, um escândalo. Cabeças selvagens e desconcertantes, com olhos desafiadores e irônicos, contemplam o espectador de forma despudorada. Tais figuras seriam também, o resultado direto do contato recente que Picasso havia mantido com máscaras africanas, provavelmente, como afirmam alguns de seus biógrafos, levadas por viajantes à França e colocadas à venda em alguma feira de artesanato em Paris. Sabe-se, contudo, que Picasso freqüentava o Museu Etnográfico no Palácio do Trocadero, onde havia uma coleção de máscaras africanas. O impacto da obra foi tamanho no seu tempo que o próprio Braque assustou-se ao ver pela primeira vez a pintura no atelier de Picasso.
Desde sua chegada e até 1912, Picasso integrou a boemia parisiense. Seu atelier, o Bateau-Lavoir, era vigiado pela polícia que chegou a invadir, prender e fichar seus freqüentadores. Alfred Jarry e Guillaume Apollinaire eram seus companheiros de boemias, de farras e de conversas intermináveis. Mas, como afirma Nicolau Sevecenko : “Picasso e os cubistas, poetas, pintores, dramaturgos, músicos, não eram criaturas esdrúxulas e representavam o meio muito peculiar da boemia parisiense. Desde os primórdios do século XIX, a boemia de Paris constituiu um agrupamento internacionalizado de intelectuais e artistas envolvidos com o ideário liberal , depois socialista e anarquista ,sucessivamente, com marcante participação nas revoluções e motins, os primeiros a erguerem barricadas. Seu horror e ódio à cultura filistéia e às injustiças da sociedade burguesa eram solenemente declarados. Esses boêmios tinham sem dúvida, uma existência incerta, vivendo de expedientes ocasionais ajudando-se uns aos outros tanto quanto possível, sendo sempre muito inclinados às drogas, às reuniões eufóricas e rituais espontâneos de escândalo público nos quais desafiavam tanto seus desafetos nas instituições oficiais, quanto os cidadãos conformados com sua vida pacata e, com especial destaque, as autoridades. Um pano de fundo como esse explica com muita clareza as posições éticas e estéticas dos cubistas: o cosmopolitismo, o anti-imperialismo, a denúncia do eurocentrismo e de todo centrismo, o antimilitarismo, a antimetafísica, o desprezo por qualquer autoridade, hierarquia, disciplina, intolerância ou doutrina fechada. O que torna perversa ironia o mau hábito de serem chamados com o nome militar de uma vanguarda.”
Os conflitos que antecedem a primeira grande guerra e os confrontos que se seguiram acabaram com a boemia e representaram também o fim de um breve e rico período que revolucionou o pensar, o fazer e o fruir artístico. Picasso esteve no epicentro dessas transformações que chamamos de arte moderna.
Picasso e o Brasil
Foi enorme a influência que Picasso e o cubismo exerceram sobre os artistas brasileiros durante todo o século XX. A poderosa linguagem cubista chegou a ser comparada por Tarsila do Amaral, se bem que de modo não literal, a um rito iniciático ou de passagem, espécie de rio que todo modernista deve atravessar, indispensável a todo artista que desejasse se impor como moderno. Nos primórdios do modernismo no Brasil, ela dizia que todo artista deveria passar pelo cubismo, “a exemplo dos jovens que faziam o serviço militar”.
Teve repercussão o exercício compulsório proposto por Tarsila. Quase todos os modernistas brasileiros realizaram obras cubistas ou introduziram elementos “cubistas” nas suas obras, até mesmo a expressionista Anita Malfatti. Vicente do Rego Monteiro foi grato ao movimento, como afirmaria mais tarde: “Minha pintura não poderia existir antes do cubismo que me legou as noções de construção, luz e forma”.
A partir da Semana de 22, ou seja, 15 anos depois de Picasso ter pintado a Demoiselles d’Avignon, as transformações cubistas e pós-cubistas tornaram-se conhecidas no Brasil, daqueles tempos, como “futuristas”. O termo, obviamente não se restringia às características do movimento italiano, com influências fascistas, liderado por Marinetti. Seu significado voltava-se muito mais aos conceitos de arte moderna, revolucionária e internacionalista. Tudo que fosse considerado moderno na cultura dos anos 20 era classificado como “futurista”. E o futurismo, no Brasil, vinha prenhe de otimismo com as transformações da nossa sociedade.
Ser moderno significava abrir perspectivas para o futuro, criar possibilidades de inserção no mundo das transformações, rompendo com a mentalidade de uma sociedade que ainda mantinha hábitos escravocratas. Ser modernista era estar aberto às novas idéias.
O futurismo (leia-se cubismo) funcionava como mola propulsora que conduzia à modernidade e que através dela, acreditavam os poetas, pintores e intelectuais da época que poderíamos acertar nosso “relógio” com a Europa, não apenas do ponto de vista da arte, mas também do ponto de vista do desenvolvimento econômico e social. Assim como Picasso revolucionava a arte, os artistas modernistas brasileiros traziam o germe de uma revolução no plano das idéias, das obras e no plano social. Assim como Picasso que engajou-se politicamente contra as injustiças sociais, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Pagú, Di Cavalcanti, Portinari, e tantos outros, engajaram-se no movimento comunista brasileiro e muitos deles foram perseguidos e presos em razão de suas idéias políticas.
Cândido Portinari foi sem dúvida o mais picassiano dos nossos grandes artistas. Muitas de suas pinturas mostram, no tratamento do espaço e na construção da figura, as lições do cubismo.
*Fabio Magalhães é curador da mostra de Picasso e crítico de arte. Voltar ao topo
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