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ensaio

 

Academia Julian

A viagem a Paris de artistas brasileiros
no final do século XIX


Jean Auguste Dominique Ingres - A grande odalisca (1814)

Ana Paula Cavalcanti Simioni

 

                    Na montagem da Academia brasileira - batizada em 1826 com o nome de Imperial Academia de Belas Artes -, a viagem à Europa desempenhou, desde o início, um papel estratégico: permitia que os aspirantes à carreira artística se defrontassem com as obras e os ensinamentos dos "grandes mestres". Esses funcionavam como modelos que deveriam guiar a produção dos mais jovens, lições a serem incorporadas. Foi durante a gestão de Félix Émile Taunay, em 1844, com a regulamentação do Prêmio de Viagem aos melhores alunos, que finalmente se concretizou a meta de enviar alunos ao exterior.
                    Até 1855, Roma, vista como o berço do classicismo, constituía o principal destino dos estudantes. Mas, aos poucos, a capital italiana cedeu espaço para Paris, alçada à condição de metrópole cultural do século XIX. A cidade luz concentrava o mais notável conjunto de instituições artísticas de outrora, como o enciclopédico Museu do Louvre, a escola de formação de artistas acadêmicos mais reputada mundialmente - École des Beaux-Arts (EBA) - e o espaço por excelência de consagração dos artistas: o afamado Salon anual. Paralelamente a essas imponentes instituições, publicamente governadas, havia toda uma rede de ateliês de artistas e escolas particulares que orbitavam o sistema oficial.
                    Tamanha concentração de atrativos seduzia jovens aspirantes às carreiras artísticas dos quatro cantos do mundo, com percursos e motivações bastante diversas. Entre eles alguns não passavam de amadores endinheirados em busca de refinamento cultural, vendo nas belas-artes um passatempo importante e estimulante; outros aproveitavam seus períodos de férias para receberem lições com mestres renomados e, em especial, havia aqueles que eram obrigados, por serem bolsistas da academia nacional, a estagiarem em instituições previamente escolhidas dentro de um rígido programa de estudos. Para esses, a Académie Julian era, na França, o primeiro endereço.
                    A escola inaugurada em 1867 por Rudolf Julian (1839-1907) - um antigo aluno de Léon Cogniet e Alexandre Cabanel, pouco notável por seus dotes como pintor - inicialmente restringia-se a uma pequena sala na Passage des Panoramas, situada em Montmartre. Em 1880, ao lado daquele espaço, o diretor abriu um curso exclusivamente para mulheres, a princípio com poucas discípulas, não mais de quarenta. Em pouco tempo, porém, seu empreendimento se tornou um império: em 1885 a escola já possuía quatrocentas alunas e, quatro anos mais tarde, atingia a cifra de seiscentas. Em duas décadas o diretor inaugurara nove ateliês espalhados pela cidade de Paris, entre os quais cinco dirigidos aos alunos do sexo masculino e os demais às mulheres[1].

artistas brasileiros na Academia Julian


                    No último quartel do século XIX, mais precisamente entre 1882 e 1922, contabilizou-se, segundo os documentos encontrados nos Archives Nationales e nos arquivos particulares do senhor Del Debbio, a passagem de 75 homens e catorze mulheres brasileiros pela instituição (cf. Simioni, 2004) (consultar tabela ao final). Apesar do contingente significativo, essa escola tem sido menos estudada pelos interessados em história da arte brasileira do que a École des Beaux-Arts, sobre a qual recai, comumente, o foco de interesse dos estudos brasileiros sobre arte acadêmica[2]. Porém foram poucos os artistas patrícios que, segundo a documentação encontrada, realizaram de fato estágios duradouros na prestigiosa instituição oficial: Almeida Júnior (em 1878), Pedro Américo de Figueiredo e Mello (em 1863), Rodolfo Amoedo (em 1899), Lucílio de Albuquerque (em 1910) e sua esposa, Georgina de Albuquerque (em 1910), a única mulher compatriota a vencer as exigentes provas de ingresso no período estudado[3]. Nesse sentido, parece-me que vale a pena recuperar o papel desempenhado pela academia de Julian na formação de toda uma geração de artistas nacionais que, entre as duas últimas décadas do século XIX e as duas primeiras do século XX, procuraram ali os modelos do que consideravam a "melhor" arte.
                    O que, afinal, essa escola tinha a oferecer a seus alunos? O que fazia com que tantos jovens estrangeiros se expatriassem, pelo menos por alguns anos, e pagassem relativamente caro para freqüentar suas aulas? A meu ver são três as razões que determinaram o sucesso da instituição: primeiramente, cabe ressaltar que ali eram perpetrados os mesmos métodos de ensino empregados na École des Beaux-Arts, de sorte que a escola de Julian funcionava como uma espécie de "cursinho preparatório" para o ingresso na prestigiosa escola oficial. Além disso, ela ocupava uma posição privilegiada no campo acadêmico francês, na medida em que contava em seu corpo docente com mestres renomados, que detinham as posições dominantes nos salões; eles atuavam a um só tempo como professores e como júri e tendiam a favorecer seus próprios discípulos nas concorridas premiações. E, por fim, a academia foi pioneira no ensino e na profissionalização das artistas do sexo feminino de todo o mundo, tornando-se convidativa para um grande contingente de mulheres que desejavam se aprimorar como artistas e que não encontravam em seus países de origem a possibilidade de fazê-lo.


A Académie Julian em meio ao sistema artístico francês

                    O concurso de admissão da École des Beaux-Arts, a partir do decreto de 1884, determinava o mesmo procedimento para franceses e estrangeiros. As provas de ingresso realizavam-se duas vezes ao ano, nos meses de março e agosto, e consistiam nas seguintes etapas: para os pintores, um desenho a partir do natural em uma das sessões e a partir de um gesso em outra, a serem executados em doze horas (exame considerado eliminatório); depois um desenho de anatomia (osteologia) executável nas loges em duas horas; um exame de perspectiva a ser feito nas galerias em quatro horas; um objeto em relevo com indicações de linhas em perspectiva; um fragmento de figura modelada a partir de um gesso, a ser feito em nove horas; um exercício de arquitetura elementar, feito ao longo de seis horas nas galerias; um exame, escrito ou oral, sobre as noções gerais de história. Para os escultores mantinham-se as mesmas etapas, porém não haveria prova de perspectiva, a figura deveria ser modelada d'après nature em condições similares às dos pintores. Apenas os artistas premiados com medalha ou com o primeiro lugar nos concursos precedentes estariam dispensados das provas de admissão (cf. Grunchec, 1990, pp. 37-43). Como se percebe, vencer tais concursos pressupunha um conhecimento prévio de anatomia, um certo traquejo na língua francesa, conhecimentos da história do país e, principalmente, uma habilidade notável no desenho.


Nicolas Poussin - O funeral de Fócion (1648)

                    Procurando enfrentar a concorrência, muitos alunos franceses e estrangeiros cursavam ateliês particulares, como os de Julian, onde aprendiam as técnicas de controle das linhas e das cores, além de se exercitarem cotidianamente na captação do modelo vivo. O conhecimento do corpo humano e sua exata representação eram aspectos primordiais na formação de qualquer artista. Somente dominando-os o pintor seria apto a conceber telas que seguissem o cânon acadêmico, calcado em uma hierarquia dos gêneros que previa, no cume, a pintura de história e, na seqüência, o retrato, as pinturas de gênero, as paisagens e, por fim, as naturezas-mortas.
                    As pinturas de gênero histórico versavam sobre grandes temas, retirados das tradições greco-romanas, cristãs ou de episódios representativos mais recentes. Todavia, independentemente do assunto, a figuração supunha a representação de conteúdos realizados por grandes homens, os ditos heróis. Seguindo as regras do decorum, os temas elevados deveriam ser representados de acordo, isto é, fatos heróicos mereciam representações que os enobrecessem, por meio de corpos bem desenhados, idealmente belos e agradáveis ao olho.

Dominar por completo a arte da representação


                   Como já notou Friedlander, [...] o Herói [...] não era apenas alguém que realizava grandes feitos ou proezas físicas e cuja força muscular e beleza física causavam admiração. Ele era, antes de mais nada, alguém [...] cujo nobre corpo revista uma alma resplandecente de virtude e cujas realizações poderiam servir de exemplo como um ideal a ser atingido (2001, p. 19).

                    Logo, um bom artista acadêmico deveria saber representá-lo à altura de seu valor moral e, para tanto, urgia dominar por completo a arte de captar e descrever o corpo humano, centro simbólico e iconográfico daquele tipo de arte. E, com efeito, grande parte da memória iconográfica dos alunos (tanto estrangeiros como brasileiros) constitui-se de desenhos a partir do modelo vivo. A exemplo da remessa da escultora Julieta de França, primeira artista brasileira a receber o importante prêmio de viagem, entre 1901 e 1906 (cf. Simioni, 2004).
                    Visando a engendrar habilidades que orientassem os jovens artistas nesse sentido, as instituições oficiais prescreviam um currículo que estipulava, para os primeiros anos, o desenho de ornatos, o desenho figurado e o desenho d'après l'antique, realizado a partir de estampas e estatuetas em gesso. Era somente após dominar por completo a ciência da linha e da proporção que o aprendiz teria acesso a um nível considerado avançado, como o do modelo vivo. Na Académie Julian, as etapas não eram tão rígidas, e alunos e alunas praticavam concomitantemente os diversos tipos de desenho. Certamente tal flexibilidade atraía uma clientela desejosa por informações que lhe fossem úteis tanto para os exames oficiais como para o domínio das técnicas necessárias para a fatura de obras; o que ali se fornecia era um meio mais rápido para se alcançar tais objetivos.


Privilégios e favorecimentos

                   
Mas, uma vez formados e concursados na EBA, por que tantos alunos permaneciam na escola? Havia decerto outro motivo para que ela fosse tão procurada por aspirantes à carreira acadêmica. Um segundo ponto a ser demarcado no que tange à centralidade da Académie Julian é o modo como ali, em virtude da contratação de um grupo seleto de professores, levou-se a cabo uma eficaz política de favorecimentos de seus discípulos. Ao contratar mestres distintos, que além do valor artístico ocupavam postos de prestígio nos salões, atuando como júri tanto de seleção como de premiação, o diretor da escola assegurava as chances de sucesso para muitos de seus alunos. Essa clientela, que a cada dia parecia se multiplicar, ansiava pelas possibilidades de privilégio ali engendradas, atribuindo ao destaque obtido nas exposições o poder de determinar retornos gloriosos para seus países de origem, com novos clientes, mais dinheiro e, talvez ainda, fama.
                   

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