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Aracy Amaral - ensaio

 

Tarsila: entre o racional e o surreal
Aracy Amaral


Auto Retrato II, 1926 .Coleção Particular

 

                   É paradoxal que Tarsila do Amaral (1886–1973), que se declarou uma artista “cubista” ao regressar ao Brasil em fins de 1923, após intenso ano em Paris, ocasião em que estudou com Lhote, Gleizes e Léger, tenha sua obra nos anos de 1920 caracterizada por vertente mais surrealizante que baseada na racionalidade construtiva. Em conseqüência das orientações desses mestres de Paris, sintetiza seu traço do ponto de vista gráfico, assim como depura suas cores e formas em contato com Léger, de quem sua pintura mais se aproxima por volta de1924 (São Paulo, EFCB e A Gare), embora no ano anterior seu cromatismo já estivesse significativamente imerso na calidez dos trópicos (Rio de Janeiro, A Negrae Caipirinha, de 1923).
                   Ao mesmo tempo, o tema de suas pinturas em seu período máximo de contribuição, de vigorosa originalidade (de 1923 a 1930), a partir de 1924, será a paisagem, urbana e rural, seus auto-retratos e cenas de estados de espírito ou situações de devaneio ou sonho, transfigurações de ambientes de sua infância rural, distantes da temática de exercícios cubistas em que a havia iniciado Gleizes e que contemplavam naturezas mortas rigorosamente construídas.
As paisagens nasceram de seus apontamentos de viagens pelo Brasil, quando percorreu o interior do Estado de Minas Gerais assistindo às manifestações religiosas populares da Semana Santa e visitou o Rio de Janeiro durante o Carnaval daquele ano. Essas duas viagens, realizadas com um grupo de amigos modernistas brasileiros, tinham sido previstas a fim de fazer o poeta suíço-francês Blaise Cendrars, grande amigo do casal Tarsila–Oswald de Andrade, conhecer um pouco mais intimamente o Brasil que ele então visitava pela primeira vez.
                     Na transposição da anotação gráfica sintética, rápida como um flagrante de câmera fotográfica, para a pintura, vemos como Tarsila confere a suas composições um clima fantástico, ou onírico – em particular ao focalizar plantas, flores e vegetação em geral. É nesse particular que vemos a mão ou a sensibilidade feminina operando sobre a tela com minucioso perfeccionismo, o qual está bem descrito pela própria artista quando ela diz que “les belles choses se font lentement”, assim como quando escreve a um amigo em 1925 afirmando que pertence ao passado fazer uma pintura em apenas oito horas de pinceladas: “Trabalho hoje com a paciência de Fra Angélico para que o meu quadro seja lindo, limpo, lustroso como uma Rolls saindo da oficina.”
                   Ou seja: Tarsila apreende com os mestres parisienses do cubismo a assepsia da composição. Daí, advém a purificação de sua paleta, valorizando as cores vibrantes que passou a ver com renovado interesse no casario e na vegetação do interior do Brasil. A projeção de sua infância pela paisagem rural, da luminosidade e espacialidade territorial comparecem em suas telas, assim como sua preocupação em fixar aspectos da paisagem urbana alterada após sua ótica do construtivismo (como em EFCB e A Gare, de 1924, por exemplo).


O Touro (Boi na Floresta), 1928. Acervo MAM da Bahia


                   Porém, o que emerge em seu trabalho e caracteriza sua contribuição mais marcante é, por certo, a irracionalidade de sua pintura onírica, de forte apelo, roçando o sexual, como em O Lago, Manacá, Sol Poente, Floresta. Nessas telas, o elemento vegetal se confunde em hibridismo, tão desconcertante como fascinante, com o mundo animal, o bicho com a flor-planta.
Daí, percebermos curiosa afinidade em certas imagens suas com as do universo igualmente onírico/vegetal da norte-americana Georgia O´Keefe (1887–1986), artista que nunca conheceu, embora da mesma geração. Por outro lado, a conotação sexual mencionada, igualmente com referências ao sonho, estaria presente na década de 1940 na obra envolvente de outra artista brasileira da geração seguinte, a surrealista Maria Martins (1900–1973).
                   Se a predileção da temática vegetal em Tarsila pode ser atribuída à sua infância decorrida na familiaridade com o meio rural, assim como à sua atenta observação da natureza, é impossível desvincular essa temática da preocupação de “brasilidade nativista” – mas não nacionalista – que dominava os ambientes culturais dos grandes centros do Brasil na década de 1920, como São Paulo em particular, e Rio de Janeiro, no período do modernismo combatente.                    Objetivava-se, com esse movimento, o resgate dos valores tradicionais do Brasil com menos importação da Europa, em contraposição ao período de prevalência acadêmica. Renovar, segundo a atualização de linguagem, inspirada sem dúvida nas comemorações do centenário da independência (1922), significava, ao mesmo tempo estar atento, do ponto de vista de artes plásticas, às lições do cubismo, e escolas emergentes como o surrealismo(2).
                   Assim, passado o impacto em que se envolvera com o cubismo a fim de absorver “o moderno”, Tarsila estava atenta ao “matavirgismo” apregoado por Mário de Andrade, um dos líderes do movimento modernista paulista, ao lado de Oswald de Andrade, então companheiro de Tarsila. Este, futuro marido da pintora, criaria um manifesto com similar objetivo, o de ser moderno apoiando-se em nossas tradições, intitulado de Pau-Brasil(3)– assim como seu livro de poemas publicado em 1925, no manifesto com o mesmo nome, do ano anterior. O sentido era projetar o Brasil, seu ambiente, sua realidade visual, sempre dentro de uma linguagem atualizada.


Operários,1933. Acervo Governo do Estado de São Paulo


                   Mário de Andrade parece ter sido o primeiro a usar a expressão “construtiva” para qualificar o desenho de Tarsila de meados de 1924 ao comentar o livro de poemas Feuilles de Route – Le Formose, de Cendrars, quando essa publicação saiu em fins desse ano. E estabelece, pela primeira vez, relação entre o trabalho de Tarsila e Blaise ao escrever que “a nova coleção de poesias de Blaise Cendrars vem comentada pela ingenuidade construtiva do traço sólido e tranqüilo de Tarsila do Amaral. Não se pode deixar de notar a correlação que existe entre a arte da pintora brasileira e a do poeta francês”(4).
                   Porém, esse caráter construtivo cederia rapidamente lugar a telas como Morro da Favela, Carnavalem Madureira, O Mamoeiro, A Feira, todas desse mesmo ano de 1924, com imagens de linhas ondulantes e paisagens “nativas”, nas quais tem predomínio a cor – exaltada, exacerbando os sentidos.
                   A partir da síntese com que continua definindo os diversos elementos do quadro (pessoas, plantas, animais, casario, vegetação) desprovidos de sombras, recortados sobre o fundo, lembramos da recomendação de Cendrars que estimularia Tarsila a trabalhar nessa direção: preparar a exposição de Paris a partir do Morro da Favela. Seria este um incentivo com direcionamento seguro, por parte de Cendrars, importante para Tarsila como personalidade intelectual, de um ambiente respeitável como o parisiense?


Retrato de Milton do Amaral,1919. Coleção Particular

                   
                   O certo é que essas telas conduziriam a artista a desenvolver sua pintura na linha que denominamos de “Pau-Brasil exótico”: cenas interioranas, com elementos recortados, estilizados, colourful, aprazíveis ao gosto europeu e, ao mesmo tempo, tão “brasileiras”, no sentido da imagética perseguida no período modernista dos anos de 1920, época muito preocupada com a identidade nacional. Daí, o escritor Paulo Prado dizer que ter reconhecido pelo seu colorido, do outro lado da rue de La Boetie, a Galerie Percier, ao buscar, em Paris, o local onde a artista realizava sua primeira individual em 1926.

 

           Imagens - Divulgação        

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